As tradições e a cultura
Encontrei duas fotocópias de páginas dactilografadas, que não têm data, mas pelo conteúdo e pela história, devem remontar a finais dos anos 80, séc. XX (!). Também não sei, agora, se isto foi publicado em algum lado. Penso que não.
O tema que ali se retrata (ou procura retratar) está dividido em duas partes. Vamos transcrever daquelas páginas o que escrevi, provávelmente, há mais de vinte e cinco anos. Está assim:
I - A HISTÓRIA
Para ser feita, embora desajeitada e aligeirada análise sobre a faceta cultural da freguesia de Valongo do Vouga, podemos ter necessidade de descer às raízes que marcam a vida de um povo, local ou região.
Admitimos, neste caso, alguma relação com a existência de costumes, de tradições e até certos hábitos que lhe dêem ou podem dar identidade própria. E com essa identidade faz-se a história, geram-se tradições que ficam a perdurar pelos tempos.
Se integrarmos a freguesia neste contexto, parece-nos que existe uma certa ausência desta identidade. Com a modéstia dos conhecimentos que possuímos e das pesquisas a que o tema necessariamente nos exige e que não efectuamos, podemos, em nosso entender, vincar alguns aspectos justificativos.
O factor geográfico em que a freguesia se situa, pois se a Via Romana lhe passou ao lado, bordejando o rio Marnel, as vias posteriores ficaram a "esconder" o seu território das curiosidades alheias.
No entanto, não deixou de constituir encruzilhada nas confluências de povos de regiões distintas e bastante diferenciadas entre si. Por aqui tinham ponto obrigatório de passagem os almocreves que, descendo da serra, dos lados de Viseu e outras regiões da Beira Alta (e talvez não só), se deslocavam até ao litoral. Estes, muito provavelmente, não se demoravam para continuar de seguida a sua jornada.
Também até cá chegavam os homens e mulheres da beira-mar, por estrada e rio Vouga arriba. Traziam peixe e sal, regressando pouco depois, após as respectivas transacções, levando lenha, carqueja e outros produtos agrícolas.
Parece-nos curial admitir que se tratavam de contactos com pouco tempo de permanência nas terras do Marnel e fácil será concluir que o povo sedentário da freguesia de Valongo do Vouga terá sofrido, ao longo dos tempos, a influência de uns e outros.
Sendo assim, os factos que pudessem constituir a génese da sua influência na vida tradicional ou de costumes terão sido tão depressa adoptados pela novidade de que se revestiam, como de repente se tornavam esquecidos e se esfumavam através de outros que cá chegavam, substituindo os primeiros.
Parece-nos que com dificuldade se terão criado algumas raízes que se transformassem em polo de atracção, gerando hábitos, costumes ou tradições.
O povo deste «Ualle Longum» sempre teve por amante a terra, não constituindo novidade que tão espontâneamente acudia a uma desgraça do vizinho, demonstrando talvez uma "inconsciente" solidariedade, como brincava ao entrudo, jogando à panela e gargalhando das enfarruscadelas, como ao outro dia se agarrava às suas courelas, ao amanho das terras ou à monda do pinhal, esquecendo por completo a folia, tornando-se sisudo e monótono.
Esta observação já era confirmada e sentida pelo ilustre pensador e nosso conterrâneo, Engº Bastos Xavier, quando escrevia que "na sua maioria, a nossa gente, por temperamento ou miséria, é habitualmente concentrada e triste..."
E acrescentava ainda: "A riqueza artística do seu temperamento era de pouco vulto, se a compararmos com a de outros povos. O seu trágico sentimento de viver expandia-se apenas nos entremezes das festas. Aí vinham-lhe aos olhos lágrimas de sentimento, como se ria alvarmente com a comédia do Barrozão do Cortiço, que comentava em voz alta, pategamente."
E finalizava, desta forma, procurando justificar a ausência de características que envolvessem a componente cultural do povo de Valongo: "Não é da minha lembrança que tivesse mais que uma tuna, como não sei de ranchos que avivassem com os seus cantares e as suas danças, a monotonia do nosso viver e dilatarem pelo concelho a fama artística da nossa Terra."
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O conteúdo do que foi escrito talvez há cerca de vinte e cinco anos (nem sei se mais) apenas confirma aquilo que se sentia fazer falta, ou que não existia, pois relativamente às actividades culturais de hoje não pode haver comparação possível. Quer aquilo que o nosso pensamento traduziu em palavras, quer o que foi escrito pelo Engº Bastos Xavier que, embora não sendo de todo contestatário (ao tempo), pode vir a sê-lo com aquilo que hoje se vive e passa.
A seguir a parte II.
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