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terça-feira, 27 de outubro de 2020

OS SENHORES DO MARNEL - 5

O jantar em cortejo



    O jantar veio impedir o jogo (da troca de prendas que no anterior post se comenta) e a condução solene das senhoras para a sala do refeitório foi iniciada por João Fernandes dando o braço à condessa de Pigeiros, seguindo logo atrás de D. Flâmula pelo braço do visconde. D. Pero conduzia a viscondessa, Lopo Mendes a velha D. Teresa, mãe das primas da Trofa e de Diogo de Meneses, e D. Mem ofereceu o braço a Dulce. 
- Leve a D. Francisca Fonseca, primo Mem.
  - E a prima?  
 - Eu não sou de cerimónias. Vou...
    - Quem me prefere? - quis saber Mem.

    -Vou sozinha - sorriu-lhe Dulce e o seu olhar velou-se com um dos véus de incerta doçura que por vezes o amorteciam e lhe davam uma expressão de indizível suavidade.
    Diogo de Meneses que ouvira a conversa aproximou-se:
    - Excelentíssima prima, a teimosia é na casa da Trofa apanágio de família. Duarte de Lemos, indo pela ponte de Coimbra, ao ver avançar do outro extremo o rei intruso Filipe de Castela, atirou-se ao rio para não ter de o cortejar. Conceda-me que a conduza à mesa, se não quer que me atire do eirado das donas abaixo.
    Dulce, desculpando-se num aceno de cabeça para Mem, respondeu:
    - Aceito, primo, na certeza de que não tem por mim a aversão de seu avô pelo usurpador.
    - Pelo contrário, toda a simpatia e respeito. Entre a Trofa e Jafafe são velhas as amizades e constantes as ligações. A avó de seu pai... a condessa...
    - Ambas eram condessas - interrompeu Dulce que percebera o motivo da hesitação. - Uma era a condessa de Prisbislau Sazawa...
  -Referia-me à condessa de Jafafe - explicou pressuroso Diogo de Meneses evitando manifestar qualquer alusão à bastardia de Lopo.
Diogo espantava-se que que a cigana lhe saísse condessa.
    - A avó D. Ana era da casa da Trofa, bem o sei - respondera Dulce.
    E a conversa seguiu sobre enlaces genealógicos.



segunda-feira, 19 de outubro de 2020

OS SENHORES DO MARNEL - 4

A Conferência Histórica do Marnel


    Enveredamos, nesta narrativa, por uma vereda da história local, que nos legou o Dr. Vaz Ferreira nesta interessante obra dos "Senhores do Marnel". Melhor que tudo atentemos na prosa que se segue:


    «Enquanto os convites se cruzavam (para a festa da receção à Leonor, como atrás é descrito) e se ultimavam as combinações para o dia seguinte, as meninas tinham-se agrupado no eirado da donas naquelas fúteis conversas que parecem o chilrear da pardalada ao alvorecer da manhã.
    Dulce encostada a uma das colunas do ângulo do terraço ouvia Mem referir-lhe as tradições históricas do Vouga e as lendas de feitos heróicos de Goesto Ansures. A propósito da ermida fronteira à varanda do quarto dele,  falou das batalhas do Marnel  e por fim Dulce respondeu-lhe:
    - É pena que só eu oiça coisas tão interessantes e que o primo sabe dizer tão bem.
    - Só à prima tenho o prazer em dizê-las - confessou Mem fitando-a, mas baixou os olhos embaraçado como arrependido da sua frase e por isso não viu Dulce corar ligeiramente.
    O silêncio desse mútuo enleio prolongava-se e ela rompeu-o:
    - Era um lindo tema para uma conferência... Pretexto para nos reunirmos todos.
    - Aborreceu-a ouvir-me?
    -Tanto que lhe estou pedindo para o ouvir outra vez.
    Mem levantou os olhos e viu-a, serena já, com um sorriso meigo e uma expressão suave no olhar brando e caricioso.
    - Se tem empenho nisso - condescendeu ele.
    - Empenho não. Mas lembrava essa diversão um pouco menos banal.
    - Estou às suas ordens.
    - Não me disse que um dos combates foi em Junho? Solenizemos o aniversário.
    - Tendo a sua colaboração, com todo o gosto.
    - Como poderei eu colaborar?
    - Tocando uma música guerreira no piano. Aquela tomada de Moscovo que já lhe ouvi, por exemplo.
    - O 1812 de Tchaikowski?
    - Com a marselhesa dispersa entre o estridor da marcha...
    - A que viria aí a marselhesa? Se fosse o Hino da Carta...
    - Ou o Rei chegou.



    Dulce sorriu alegre, os seus olhos fulgiram num súbito relâmpago quebrado por um véu de suave placidez.
    - Seja - disse ela. - Aceito a colaboração. Temos tempo ainda para me preparar.
    - Que conspirata é esta aqui no cantinho? - perguntou-lhes Vasco, aproximando-se.
    - Combinávamos uma festa - disse a Jafafinha.
    - A serenata?
    - Não. Uma conferência - pormenorizou Mem.
    - Da Leonor?
    - Não. Do primo Mem.
    - Tua!
    - Não me achas capaz?...
    - Inspirado pela Dulce és capaz de grandes feitos!
    - Ao contrário, foi ele que me inspirou - respondeu Dulce, a desviar a intenção da frase.
    - Ah! É uma conferência entre os dois.
    - Em que ambos colaboramos. Eu digo e a prima toca.
    - E eu ouço.
    - Ouvem todos - corrigiu Dulce.
    - Tu podes cantar - aventou Mem. 
    - Cantar o quê? Só se o tema for o fado.
    - Não é. Mas...
    - Eu não presto para mais nada.
    - Presta sim, primo. Mesmo no fado nos pode cantar uma das lendas do Vouga.
    - Isto é outra coisa. Agrada-me a ideia.
    E começaram combinando a forma de ligar a música à conferência, prometendo guardarem segredo para maior ser o efeito pela surpresa. 
    Foram os três, de uma das janelas do salão godo, ver o sítio da batalha, as passagens do Marnel e as pontes onde estava um dos exércitos e defronte as alturas de Pedaçães de onde o inimigo atacara. Mem explicou os detalhes e as circunstâncias que conhecia do combate. Dulce e Vasco ouviam-no atentos».

(Continua)

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