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sexta-feira, 6 de novembro de 2020

OS SENHORES DO MARNEL - 6

 O Jantar aristocrático e o concerto de piano

    
Após a conversa sobre enlaces genealógicos, com que termina o episódio anterior, seguiu-se o jantar todo aristocrático no Marnel (Monte Reguengo) que pela descrição que se segue nos dá uma amostra do estilo de vida que então era vivido. Então a conversa foi assim:
    Mem cumprindo contristado a indicação de Dulce, deu o braço à mulher do Fonseca de Macinhata. Mas ao chegar à mesa ficou mais pesaroso ainda ao ver Dulce sentada entre Pero e Joaquim Teixeira. O lugar dele era entre Matilde Pigeiros e uma das Meneses da Trofa, quási em frente de Dulce.
       Três ou quatro vezes notou Mem que Dulce mostrava a mão crispada ao irmão, sorrindo e voltando-se em seguida a conversar com o Teixeira.
      Tanto a prima Matilde como a Marianinha Meneses se esforçaram a provocar-lhe conversa todo o jantar, sem conseguir dele, mais do que as atenções restritamente exigidas pela correcta delicadeza. Vasco que estava do outro lado da mesa um pouco mais afastado, fez algumas vezes sinais a Mem para o animar. Tudo foi inútil.
        Na altura do começo da sobremesa João Fernandes ergueu-se de taça em punho e fez-se um silêncio relativo. O dono da casa agradeceu a todos a honra que lhe davam e em nome dos habitantes permanentes das duas margens do Vouga brindou pelos hóspedes, pelos recém chegados a Jafafe, a Segadães e ao Marnel.
       O visconde fez sinal a Lopo e este respondeu ao brinde, em nome dos «da capital», fazendo uma saúde a D, Maria Flâmula.
        Pero, a quem o pai distribuíra esse papel, brindou, generalizando a todas as senhoras presentes, em frases rendilhadas e pretensiosas, a saúde feita à mãe e, como respondia a Lopo Mendes, fácil lhe foi personalizar na filha a sua saudação.
       Também ao outro filho distribuíra João Fernandes uma incumbência nas saúdes e logo a seguir ao irmão, Mem levantou-se pálido, um pouco trémulo, mas com voz firme começou. A todas as senhoras brindara o mano, a todas em geral, sem especializar qualquer delas, que todas iguais respeitos e considerações mereciam. Só ele, frisou, sentia a necessidade e tinha o direito de especializar. Era um dever de gratidão que gostosamente cumpria. Se não podiam estranhar-lhe que entre todas extremasse sua mãe, também não tinham de levar-lhe a mal que, tendo encontrado outra mãe a fazer-lhe quási esquecer as saudades da que ali deixara, a irmaná-lo durante meses aos próprios filhos em desvelos e atenções, ele aproveitasse aquele ensejo para lhe beijar a mão, reconhecido pela hospitalidade recebida em Lisboa. A todos os parentes de lá tinha de agradecer o acolhimento benévolo: aos condes de Pigeiros e às filhas, ao primo Lopo e à prima Dulce, permitissem-lhe, porém, que personificasse o seu reconhecimento, sem esquecer a exagerada e imerecida amizade do primo visconde, resumindo em pouquíssimas palavras o seu brinde à prima viscondessa, no que por certo ao seu coração seria mais grato:
       - Primos Ramiro e Vasco, à saúde da vossa mãe - terminou ele, indo beijar a mão da viscondessa que o recebeu nos braços.
     O brinde comovera muitos dos convivas; mas, ao voltar ao seu lugar, Mem só viu Dulce, sentada enquanto todos de pé brindavam a viscondessa e caindo-lhe as lágrimas abundantes, que nem tentava esconder.
      O visconde ficara de taça na mão trémula, muito comovido, e esperava serenidade que lhe permitisse falar.
     - Perdão, prima  Dulce, Fui impensadamente cruel, esquecendo a sua dor - disse Mem nesse intervalo.
     Um olhar velado pelas pelas lágrimas agradeceu a Mem que insistia:
     - Perdoe-me avivar-lhe a saudade de sua mãe.
   - Desde que me compreende, nada tenho a perdoar-lhe, só a agradecer-lhe - respondeu Dulce, mais calma.
       Pero para distraí-la tentou uma frase.
   -Desculpe-me, primo, não lhe dar agora atenção - obviou ela e voltou-se para o visconde que começava agradecendo a Mem e fazendo-lhe rasgado elogio em frases repassadas de sentimento.
      José Pinheiro viu o ar sentimental e comovente que os brindes iam tomando e a seguir ao visconde propôs uma saúde alegre, cheia de espírito, com ditos picantes para todos os rapazes presentes, em nome dos quais ele, o Benjamim daquela irmandade, falava por incumbência do Joaquim Teixeira, o pai de todos, como o dedo grande daquela mão de estúrdios, que era uma molhada de mocidades, ardentes umas, já ardidas outras, e indicava o Teixeira e o Figueiredo. A mocidade tinha direitos e um deles era a adoração do belo. E o belo o que tinha de mais belo eram as belas. A elas era o seu brinde, a todas sem excepção. Era preciso quebrar aquela torrente de sentimentalismo, opor um dique risonho, alacre, jocoso. A beleza impunha-se e à beleza triunfante rendia o seu preito. Não queria, porém, excitar ciúmes, armar  intrigas, levantar rivalidades. E aqui começou mostrando as belezas do rosto, do donaire, da mocidade, com certeiras referências a cada uma das raparigas. Cada qual que especializasse a sua adorada erguendo disfarçadamente a taça, com um olhar, um gesto de entendimento. Ele não queria lisonjear nenhuma, envaidecer qualquer mais do que as outras. Há, porém, uma beleza que perdura e se estende pela vida fora sem se apagar: é a beleza moral da respeitabilidade, principalmente quando coroa a merecida fama de encantos admiráveis; por isso ele brindava às meninas, todas, augurando-lhes que fossem, passados muitos anos, espelho de virtudes e tradição de beldade como o exemplo que lhes apontava, com toda a consideração do seu elevado respeito. E terminou, imitando Mem no final do seu brinde:
     - Diogo de Meneses, à saúde da tua mãe. 
    A velha D. Teresa fôra nos seus tempos uma formosura falada léguas em redor, conservando ainda no porte o solene aprumo característico das belezas consagradas, da finura escultural e da distinção de raça. Agradeceu risonha o engenhoso remate de José Pinheiro, que conseguira alegrar todos e estabelecer a série de brindes especiais trocados de lugar para lugar, cruzando-se sem flores de retórica, mas com expansões risonhas e ruidosas.
    Assim terminou o jantar, espalhando-se os convidados pelas salas, onde se servia o café e os licores.
   A noite entreteve-se com conversas e danças até que Vasco, instado pelas primas, acedeu a cantar alguns fados à guitarra, impondo a condição de também cantar a Matilde e de tocar a Dulce.
   Os fados agradaram muito a toda a assistência que ouviu com igual prazer uma romanza graciosa cantada pela Matilde Pigeiros na sua vozita fresca e de timbre suave.
   Como a irmã a tinha acompanhado ao piano pediram-lhe para tocar, mas a recusa de Mécia foi invencível. Não passava de acompanhamentos e danças e, estando ali a Dulce, não se atreveria a fingir de pianista. A Jafafinha, sim, tocava muito bem. Demais tinha prometido.
     Logo que lhe foram lembrar o compromisso, Dulce, sem se fazer rogada, sentou-se ao piano, correu o teclado num dedilhar de experiência e executou uma composição de autor moderno desconhecida de quási todos os ouvintes.
    Fizera-se um silêncio de expectativa. Logo aos primeiros compassos, mais ou menos, conforme os temperamentos e o grau de compreensão artística, todos se entregaram às emoções daquela música empolgante e cada um reconheceu que estava ali uma artista, com o poder de transmitir o seu sentimento e deixando, até nos menos apreciadores, o efeito de uma magistral execução.
      Foi esse o remate brilhante da festa de que todos se despediram, para no dia seguinte se encontrarem no passeio em honra de Leonor Meneses.»

                                                                                                                                                     (Continua)



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