A Conferência Histórica do Marnel
«Enquanto os convites se cruzavam (para a festa da receção à Leonor, como atrás é descrito) e se ultimavam as combinações para o dia seguinte, as meninas tinham-se agrupado no eirado da donas naquelas fúteis conversas que parecem o chilrear da pardalada ao alvorecer da manhã.
Dulce encostada a uma das colunas do ângulo do terraço ouvia Mem referir-lhe as tradições históricas do Vouga e as lendas de feitos heróicos de Goesto Ansures. A propósito da ermida fronteira à varanda do quarto dele, falou das batalhas do Marnel e por fim Dulce respondeu-lhe:
- É pena que só eu oiça coisas tão interessantes e que o primo sabe dizer tão bem.
- Só à prima tenho o prazer em dizê-las - confessou Mem fitando-a, mas baixou os olhos embaraçado como arrependido da sua frase e por isso não viu Dulce corar ligeiramente.
O silêncio desse mútuo enleio prolongava-se e ela rompeu-o:
- Era um lindo tema para uma conferência... Pretexto para nos reunirmos todos.
- Aborreceu-a ouvir-me?
-Tanto que lhe estou pedindo para o ouvir outra vez.
Mem levantou os olhos e viu-a, serena já, com um sorriso meigo e uma expressão suave no olhar brando e caricioso.
- Se tem empenho nisso - condescendeu ele.
- Empenho não. Mas lembrava essa diversão um pouco menos banal.
- Estou às suas ordens.
- Não me disse que um dos combates foi em Junho? Solenizemos o aniversário.
- Tendo a sua colaboração, com todo o gosto.
- Como poderei eu colaborar?
- Tocando uma música guerreira no piano. Aquela tomada de Moscovo que já lhe ouvi, por exemplo.
- O 1812 de Tchaikowski?
- Com a marselhesa dispersa entre o estridor da marcha...
- A que viria aí a marselhesa? Se fosse o Hino da Carta...
- Ou o Rei chegou.
Dulce sorriu alegre, os seus olhos fulgiram num súbito relâmpago quebrado por um véu de suave placidez.
- Seja - disse ela. - Aceito a colaboração. Temos tempo ainda para me preparar.
- Que conspirata é esta aqui no cantinho? - perguntou-lhes Vasco, aproximando-se.
- Combinávamos uma festa - disse a Jafafinha.
- A serenata?
- Não. Uma conferência - pormenorizou Mem.
- Da Leonor?
- Não. Do primo Mem.
- Tua!
- Não me achas capaz?...
- Inspirado pela Dulce és capaz de grandes feitos!
- Ao contrário, foi ele que me inspirou - respondeu Dulce, a desviar a intenção da frase.
- Ah! É uma conferência entre os dois.
- Em que ambos colaboramos. Eu digo e a prima toca.
- E eu ouço.
- Ouvem todos - corrigiu Dulce.
- Tu podes cantar - aventou Mem.
- Cantar o quê? Só se o tema for o fado.
- Não é. Mas...
- Eu não presto para mais nada.
- Presta sim, primo. Mesmo no fado nos pode cantar uma das lendas do Vouga.
- Isto é outra coisa. Agrada-me a ideia.
E começaram combinando a forma de ligar a música à conferência, prometendo guardarem segredo para maior ser o efeito pela surpresa.
Foram os três, de uma das janelas do salão godo, ver o sítio da batalha, as passagens do Marnel e as pontes onde estava um dos exércitos e defronte as alturas de Pedaçães de onde o inimigo atacara. Mem explicou os detalhes e as circunstâncias que conhecia do combate. Dulce e Vasco ouviam-no atentos».
(Continua)
2 comentários:
Olá,
Que bom que "voltou"!
Muito prendados que eram estes primos.
Aguardo os próximos capítulos...
Beijinhos
Vou saltar umas tantas linhas e descrever um jantar solene e aristocrático que como antes referi se iria desenrolar no Monte Reguengo. Isto após uns diálogos que originaram a organização de uma brincadeira a que chamaram o jogo da troca de prendas. E então descreve-se assim a continuação da saga...
JM Ferreira
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