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sábado, 31 de outubro de 2009

Coisas da Guiné - 12


Fogo com tornado em chuvas

No fundo escuro da morança circular, entorpecida pelo reumatismo, que lhe roía as juntas, gemia a "mulher grande" do chefe da tabanca.
Àquela hora estavam os homens a juntar forças ao terçado para varrer mato, sulcar a terra, enterrar o fruto, para que a mancarra despontasse.
O chefe com os seus vizinhos de morança repetiam e juntavam os esforços, destilavam suor sobre calor abafado, para o trabalho do talhão deste ou daquele; onde cresceriam as suas esperanças em nova campanha de venda.

Esta é uma digitalização ao que foi baptizado de «Jornal da Caserna» por mim elaborado na Guiné, no que respeita à composição feita à mão em papel stencil (é assim que se escreve?). Foram elaborados 15 números. O último em Outubro de 1964, quando se lembraram de nos «despachar» para outra zona operacional. A ideia, que partiu de mim, teve a colaboração de mais militares, nomeadamente na ilustração que era feita à mão, em desenho livre e não havia fotocópias (o que era isto em 1964? Ninguém sabia...)
Ora, o velho e resoluto Samba, fula genuíno, era um dos mortais em que a tropa do destacamento perto depositava confiança. Assim era na verdade e nas horas de trabalho ou de calcar mato de lés a lés, espiolhava com os seus homens todos os movimentos suspeitos do pessoal bandido no mato cerrado.
A mulher do fiel Samba lá estava estendida na esteira, suportando a ferrugem dos anos. Era a única alma viva, além de um outro garoto que brincava ou dormia a sesta em sorna doentia à sombra do mangueiro acolhedor.
De repente, em surpresa assassina, os bandidos fizeram uma sortida e deitam fogo que se ateia furioso à palha seca dos moranças. Corre apressado o Samba, que ao ver fumo e gritos ao longe – pensa em mau agoiro. Quando corre ofegante passa pelos dedos o chifre e mèzinhos que trás ao pescoço. Aperta-os com força e com raiva.
Com espírito de jambacosse em mau agoiro – pensa no pior. Cansado, fura em corrida a entrada do quartel e conta ao Comandante o acontecido. Este põe o seu dispositivo de guerra em marcha, não atendendo ao tornado envolto em chuvas, que estala à mistura com o ribombar do trovão.
Os elementos facilitam a progressão. Estala um tiroteio de pôr os ouvidos a zunir e abatem-se alguns dos assaltantes em fuga precipitada. Algumas crianças fugiam espavoridas ao fogo crepitante em palha nas coberturas, sem o inevitável de algumas perecerem às chamas que as lambiam em círculo. Mulher grande – morre frente ao ódio excitado e assassino.
E só por o velho Samba ser fiel… não aderir à catequização que se promovia. Samba com a lágrima no olho, cheio de dor – olha a sua casa em chamas.
Nada mais há a fazer…
- Enfim, foram mais umas vítimas inocentes desta guerra… - comentou mais alguém para o comandante da tropa, que conformava o velho Fula.
(Do nosso correspondente em Teixeira Pinto – ÓKEY)
*****
Esclarecimento: - Chamávamos ao «Jornal da Caserna» o nosso periódico. Como Jornal tinha colaboradores e, mais que isso, "correspondentes" destacados em outras localidades. Vejam que aquilo que hoje se apregoa, alto e constante, de Comunicação Social, termo que não era muito utilizado e badalado em 1964, tinha já resquícios de estruturas daquilo que hoje é perfeitamente banal, natural e até ultrapassado. Ou seja, até tínhamos um correspondente em Teixeira Pinto, que nos enviava, por avioneta, estas histórias que depois eu transcrevia.
Agora o pseudónimo. ÓKEY. Era o Alf Mil Médico Ramiro Fernandes Figueiredo. Não me lembro mas penso que era do Porto. Embora da minha companhia foi destacado (ou «emprestado») de Ingoré à unidade de Teixeira Pinto. O mais «destravado» e bem-disposto militar que conheci. Penso que era ou ia ser psiquiatra. O que ele gostava era jogar futebol misturado com toda a rapaziada… como se na Guiné, naquele clima e naquele ambiente existissem ou fossem necessárias muitas ou acentuadas separações…

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