A Beatriz da minha infância - III
Engº Bastos Xavier
- E do lobisomem, tens ouvido falar, Beatriz?
- Tenho, meu menino, tenho...
- Já o vistes?
- Não, mas a sua tia Leopoldina já. Por altas horas não há na rua viv'alma. O céu está cravadinho de estrelas e então, no sossego da noite, ouve-se um cavalo a galopar a toda a brida, que o lobisomem tem que dar a volta a sete freguesias numa noite.
Nesta casa, na Rua Prof. João Batista Fernandes Vidal, (à Ponte Nova) morou o Engº Bastos Xavier
Para o retirarem daquele fadário, é necessário esperá-lo detrás duma porta e picarem-no com um aguilhão duma vara de bois, benzido por um padre; mas não lhe há-de tocar nem uma pinguinha de sangue, senão o infeliz passará a sina para o da vara.
É um fadário triste! Dizem que o Carlos de Santo António tinha essa sorte. Falta de palavras no baptismo.
- Tu falaste na minha tia Leopoldina, onde é que ela morava?
- Na sala das Rolas, que ficava pegadinha ao Celeiro do Capitão-Mor e onde ela vivia no meio de galinhas chocas que cacarejavm no ninho.
O Joaquim Panzineiro, do Godinho, era seu trabalhador e, pelo S. Miguel, na eira larga do Capitão-Mor, malhavam-se as espigas avermelhadas trazidas do Pedrozelo.
Naquele tempo a pobreza era muita e uma vez a falar com a Florinda, no rio onde batia a roupa, disse-me que tinha de confessar-se na quaresma, que fora buscar um alqueire de milho a casa da sua tia, ela a levara para o celeiro, pusera o alqueire no chão e ia dentro buscar o milhinho do Senhor, trazia-o às regaçadas e ela ficava muito tempo na presença do milho no alqueire. Só ela e Deus.
Então, enquanto a tia se afastava, o demónio tentava-a, ela nem queria olhar o milho, desviava a vista, mas por fim, vencia-a o demónio, e então, abaixou-se e sacudiu o alqueire para levar mais.
Uma tolice? Quem se não farta ao comer, não se farta ao lamber! Mas quê? Quando uma pessoa tem fome ou mais olhos que barriga! Sacudiu a medida mais de uma vez para acamar o milhinho e levar mais.
Mas pouco lhe servia!
Só nesse dito celeiro ficava o Silvestre, um diabo d'alma, grosso e forte, a bem dizer, que não era muito certo da cabeça. Vinha mai-la mãe, a Rosa Santa, pelo Santo António e comiam e dormiam na sua casa, ficavam no celeiro e a gente ia ouvi-los conversar antes de adormecerem.
Coisas da garotada.
Eles andavam a pedir na festa. Veja menino como eram sérias as pessoas daquele tempo...
Ai tempos! tempos!
(Continua)
(Com a devida vénia do «Jornal Valongo do Vouga», Março de 1976, página 4)
Sem comentários:
Enviar um comentário