A Beatriz da minha infância – IV
Engº Bastos Xavier
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Isto foi na minha meninice. Depois deixei de a ver. Lancei-me no mundo e cedo as pretensões da minha razão varreram a minha crença para a substituírem por afirmações feitas por entre sorrisos de orgulho que no fundo eram tão falsas como as dela.
As suas histórias, que não passam de lendas a correr de boca em boca…
Vim mais tarde a reconhecê-lo. Se eram ditas com fingida convicção, nem por isso deixavam de ser falsas.
Então eu passei sempre a sair ao anoitecer, quando as trevas desciam e as oliveiras tomavam um ar concentrado e triste, antes de se apagarem, desoladas na sombra da noite.
Às vezes a lua, branca e risonha subia redonda e fria por trás das montanhas, olhando a terra rumorosa e quente.
E quando não havia lua, os pirilampos cortavam as trevas com a luz fosforescente e luziam palpitantes e pressurosos à minha volta.
Aquele mergulhar nos sonhos, aquele mundo de mistérios atormenta a minha alma.
Aquele cosmos, naquela hora, afligia a minha sensibilidade, que adivinhava a sensação trágica da vida.
Enquanto para os outros eu era um ser estranho, certo era conhecer bem o amargo significado da vida, como a minha mãe tão fundamente adivinhava. Ela conhecia o meu segredo e por isso me dizia com infinita dor: Filho, antes eu te levasse comigo!
Depois comecei a sentir-me rodeado de uma série de sombras que eu não sabia donde vinham, que me seguiam por toda a parte, que se sentavam comigo à mesa silenciosos e tristes, que se deitavam comigo na cama e ali me trespassavam com a frialdade repugnante do seu corpo de defuntos.
Esta contínua e incómoda presença afligia-me e uma vez, numa dessas saídas ao anoitecer, desesperado, no meio da paisagem estranha, virei-me para eles de braços no ar: Porque me perseguis continuamente? Porque me não deixais? Que tenho eu convosco?
E os espectros silenciosos afastam-se e eu vejo-os ir com satisfação. Mas lá adiante, quase já a sumirem-se na curva do caminho há um desgraçado que vai mais atrás cansado, aniquilado e que amargamente volve os olhos para mim, tão tristes, tão dolorosos, um olhar sofredor de cão escorraçado que fere a minha alma.
Então enlouquecido vou para eles e clamando: Não se vão embora, falem, contem-me as vossas dores, as vossas mágoas, as vossas injustiças. Falem que eu ouço! Eles voltam e, «afrente de todos, reconheço o Manuel da Cruz, o mais desgraçado, o mais desgraçado, o mais honrado cavador da minha terra. Ele aí está a contar a sua mágoa. Cavou sessenta anos a terra, desde madrugada até ao anoitecer. Sentiu a alegria de a ver florir, noivar, à sua ordem, porque foi ele quem lhe rasgou o ventre, a fez criar, quem fez brotar, sorrir em louvores a Deus. Olhou para a sua leiva com a mesma ternura artística com que o pintor olha para o seu quadro.
Não via nela uma possibilidade de lucro, mas uma manifestação da sua índole artística. Pobre, trabalhava na lavoura por paixão, esquecido do mundo. Tinha uma filha que, por falta de saúde e por mau passadio, tuberculizou e morreu. É isto que me contava amargamente e me pedia para repetir ao mundo para fazer saber a injustiça que o amargurava, Encontrei-o muitas vezes, já noite morta, arrastando-se penosamente pelos caminhos, agarrando com os dedos mortos o pau a que se encostava. Estou agora de volta, Beatriz! Venho desiludido! Quero outra vez o pitoresco das tuas criações fantásticas! Tenho saudades dele! Pobre do homem que tem de procurar no mundo o seu destino para encontrar aí felicidade porque anseia.
Quero acreditar nas tuas mentiras, quero adormecer, quero sentar-me a teus pés. O homem é um túmulo fechado que só tem dentro podridão! Deixa-me pousar a cabeça no teu regaço. Talvez eu durma, talvez eu sonhe com outro mundo diferente! A flor do nenúfar é branca como a neve e cresce com longas folhas sobre as águas fétidas dos pântanos que o nevoeiro da madrugada esconde.
Assim é a nossa vida. Beatriz! Fala-me das bruxas, do lobisomem, do seu sortilégio. Desdobra diante de mim o teu mundo! A primeira vez de que me lembro de olhar o céu, foi ao teu colo.
Deslumbrado, mergulhei a vista no infinito para fitar essa maravilha que entontecia a minha infância. Depois, mais tarde compreendi que o ciclo exprime o destino humano vai fechar-se e a voz de Job, vinda lá de longe, chega até mim com uma previsão melhorada. «Nu saí do ventre de minha mãe, nu voltarei à terra»! Assim fala o Profeta triste!
Mas os homens desconfiam uns dos outros! Não querem ver que mal assentam os pés na terra, de tal modo a sua vida é breve!
Também eu, Beatriz, estou no fim da jornada, cansado da vida e das suas ilusões.
Deixa-me adormecer no teu regaço! A luz vai-se extinguir, quero encontrar-me outra vez com as tuas criações.
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Nota: - Extraído, com a vénia que se impõe, do Jornal «Valongo do Vouga» de Abril de 1976. Este foi o último escrito, de uma série de quatro, que o Eng.º Bastos Xavier nos legou, e que foi publicado no número de Março do mesmo ano. Já estava escrito há muito.
Mas a vida tem destas coincidências. Com a publicação do último escrito desta série, o Eng.º Bastos Xavier viria a falecer em 25 de Março de 1976. Nascera a 29 de Outubro de 1902. Há outros escritos, de sua autoria, utilizando o pseudónimo de Quasímodo.
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