(Continuação)
A segunda parte do que está antes deste, foi assim:
CADAVEIRA
NÃO PODE TER AMANHÃ (Em 1971)
Capela de Santo Amaro na Cadaveira. Hoje só há ruínas e escombros ou nem isso |
Todos sabemos que os homens de amanhã são as crianças de hoje. Cadaveira não pode ter amanhã. Uma única criança que lá existe [hoje com mais de cinquenta anos] não pode perpetuar ali a vida dos séculos. A vida vai-se escoando, como por misteriosa ampulheta do tempo. É filho da Sr.ª Gilda Fernandes. Tem dez anos. Vai à escola do Salgueiro. Conversámos com ele: Demoro pouco menos de uma hora. A minha mãe, de inverno, vai comigo até às casas da Gândara, porque saio de noite. Disseram-me que havia lobos. E tenho medo.Vocês não têm? Quero estudar, ser engenheiro electrotécnico...
A escola do Salgueiro. Estivemos lá. Não falta o asseio e a limpeza, um recreio largo, amplo e saudável. Uma única nota discordante pregada na parede, até para os menos atentos: não figuram lá os actuais governantes do país. Porquê? Perguntamos nós. A professora Emília Lopes Teixeira, que tem dado o seu melhor esforço para a cultura das crianças dos lugares em volta, oficiou duas vezes para a Câmara, mas em vão. Uma anomalia que, infelizmente, não é única.
A única criança da Cadaveira quer estudar, mas os problemas surgem: não temos meio de transporte. Não há camioneta da carreira no Moutedo. Só em A-dos-Ferreiros, mas vai para Águeda muito cedo e chega muito tarde. Agora, que miséria, a que miséria chegámos. nem podemos atravessar o rio Marnel, pois o pontão estreito, onde não passavam carros, só a pé, caiu. E não haverá quem se disponha a substituí-lo?
ISOLADOS DO MUNDO
Dos campos, chega-nos o Sr. Américo Fernandes, que ajuda a conversa: Quando o vento nordeste não bate os terrenos, a batata é boa. As vinhas dão-se bem, mas não há quem as cave. Isto de puxar à enxada não dá dinheiro. E de relance sobre os problemas: A fonte é um chafurdo, sobretudo no inverno. É miserável. De verão, a água, chapéu. Temos um caminho de cabras, caminho de pé posto. Para passar é um castigo. Se houver uma pessoa que parta a espinha, tem de morrer sem médico. A minha tia que partiu uma perna, teve de ir de carro de bois até ao Moutedo.
E rebentam mais lamentos do outro lado: Vivemos isolados do mundo. Apetece fugir daqui para fora. Se não fossem os terrenos a prenderem-nos... Por minha vontade, ia já hoje - concluiu a mulher.
Um velhote se chega - Este é o lugar mais antigo de toda a freguesia. Conheci isto só com três moradores. Hoje tem onze.
Cadaveira, que, pelo nome, sugere um lugar antiquíssimo, cemitério de povos remotos ou coisa do género, hoje [em Abril de 1971] tem onze moradores, que não são o bastante para eternizar esta terra. Cadaveira não tem um acesso fácil e tem sede de verão, porque não tem uma fonte e tem de ir, de tarecos e cântaros à ilharga, buscar a água às poças das corgas. Cadaveira quer resistir ao tempo. Mas, se melhores dias não chegarem para esta gente, os pinheiros hão-de gemer, um dia, não muito longínquo, à partida do último camponês.
*****
Este é um fiel retrato escrito do que era a Cadaveira há pouco mais de quarenta anos. Que fez história numa reportagem publicada no semanário Soberania do Povo de 17 de Abril de 1971. Os intervenientes nesta reportagem, onde estão?
Pouco tempo depois, foi fustigada, quase eliminada do mapa da freguesia, pela catástrofe do incêndio de Agosto de 1972. Foram horas de pavor, cujas chamas lamberam literalmente a capela de Santo Amaro, ceifando também a vida de uma idosa, cujo nome já não recordo.
Do jornal paroquial Valongo do Vouga, de Abril de 1974, retiramos a imagem que ilustra este facto. A capela ainda inteira. Ainda se realizaram tentativas para a fazer renascer das cinzas, mas nunca passou disso, apesar de algumas promessas por entidades que poderiam ter ajudado. Dedicada a Santo Amaro, como na página anterior citamos, tinha uma festa que se realizava a 15 de Janeiro de cada ano.
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