Em maré de recordação da revista «Valongo à Vista», como dizia antes na apresentação da canção do Moínho e da pauta musical composta especialmente para o efeito, como também referi, não sendo muito longo, a seguir se transcreve o quadro "O MOLEIRO", tal como está escrito.
O MOLEIRO
(Com uma calça arregaçada até ao joelho e outra até meio da perna, uma garrafa em cada bolso do casaco, carapuça na cabeça, descalço e enfarinhado, entra no palco o moleiro).
Compère: - (àparte); Ora aí vem um tipo que logo à primeira se vê que é moleiro. Com moleiros e carvoeiros, não há que errar. (Alto): Ó lá, seu calça arregaçada, então como vai a vida?
Moleiro: - Mal, meu amigo, o tempo dos mestres-de-farinha já lá vai. Foi chão que deu uvas. Hoje não se endireita a cabeça.
Comp: - Tem razão, meu amigo. Foi o progresso, foram as máquinas a vapor que vos prejudicaram. Razão tinha um filósofo para dizer que o progresso era a morte da felicidade!
Moleiro: - Não será tanto assim. Antes da guerra, chegava para todos. Moía-se o que se pode dizer "à farta". Hoje o caso está muito bicudo... É o cabo dos trabalhos para se pôr o moínho a andar...
Comp: - E a respeito de grãozinho? Quero-que-é-dele, não é assim?
Moleiro: - Some-se na espiga. E nem admira. Dantes eram os pardais que davam nele. Hoje são os pardais... e os pardalões...
Comp: - Tem razão. E que pardalões...
Moleiro: - Ah! Só Deus sabe a paixão que eu tenho do tempo que lá vai... (puxa da garrafa) O que me vale é esta, para espairecer!... (bebe)
Comp: - Você vem munido, hein!... Logo duas, uma em cada bolso!...
Moleiro: - Eu lhe explico. Uma, do mais brando, do mais sentimental, é para espalhar saudades do passado. Outra, do mais rascante, é para ganhar coragem para o futuro!
Comp: - Olhe que essa é boa, e original! (mudando de tom): Ai, então não querem lá ver que estou também assim a sentir a modos de falta de coragem para o futuro?!... Olhe, meu amigo, é tal a falta de coragem que sinto, que até nem coragem tenho para me conter sem lhe pedir a prova desse "rascantezinho"...
Moleiro: - Ora essa! Aí o tem, e casque-lhe, homem!
Comp: - (bebe, dando palmadinhas no peito e fazendo um prolongado ah!... de consolação). - Eh! rapazes, isto aquece cá por dentro, que nem uma fogueira de S. João!...
Moleiro: - Ai, e este, então, faz-me sonhar... Sonhar com os tempos passados!... Saía uma pessoa pela tardinha para o Alfusqueiro, com os machinhos carregados. Moenda não faltava, porque nesse tempo tudo se moía, até mesmo a paciência dos fregueses. Dava gosto viver. Compravam-se terras e punha-se o dinheiro a juros. Imagine que dois colegas meus, quando foi recolhida a moeda por ocasião da implantação da República, chegaram a levar a Águeda um burro carregado de moedas de cinco tostões de prata!... - E olhe que isto é autêntico.
Comp: - Também já ouvi falar nisso. Mas diga-me cá: como se podia juntar assim tanta moeda?
Moleiro: - Sabe que de grão em grão enche a galinha o papo. Muito trabalhinho e muita economia. E depois não é só isso. Nós dantes tínhamos um responso que dava um resultadão. Conhece-o?
Comp: - Para lhe dizer a verdade, não sei qual seja.
Moleiro: - Pois até admira, porque ele é muito popular. Mas eu lhe conto. É o seguinte:
Duas maquias me dava este saco:
Duas me deve, quatro lhe rapo!
Vem a minha Maria, tira a sua maquia;
Vem o meu João tira o seu quinhão;
Vem o moço tira para o tremoço;
- Zurra que zurra,
Ainda falta a maquia da burra.
Fica p'ra aí, fole, p'ró canto,
Que logo largas outro tanto.
Ah! Se não fosse por a Deus temer,
Nem o dono do saco tornaria a ver!
Mas, se ele me chamar ladrão,
Não verá lá saco, nem grão!...
Comp: - Por isso... você fala com tantas saudades do tempo passado!... Isso então ainda era melhor do que uma mina de volfrâmio! Mas águas passadas não moem moínhos... Espaireça, homem, espaireça!
Moleiro: - Assim farei. (bebe) E tome você lá também um pouco de coragem, para o futuro. (Bebem os dois)
Comp: - Está-me agora a lembrar uma adivinha. Vou ver se é capaz de ma decifrar.
Moleiro: - Diga lá então.
Comp: - O que é que é, que, quando tem água, bebe vinho; e, quando não tem água, bebe água?
Moleiro (Reflexivo): Quando tem água bebe vinho? E quando não tem água bebe água?! Mas isso não pode ser! É uma coisa disparatada!
Comp: - Pois é assim mesmo como lhe disse. Quando não tem água é que bebe água.
Moleiro: - Essa agora!!! Não percebo.
Comp: - Pois é muito fácil como vai já ver. Ora diga-me: O seu moínho mói sem água?
Moleiro: - Não, senhor.
Comp: - Então, quando tem água, mói, e, moendo, arranja dinheiro para o vinho. Por isso é que, quando tem água, bebe vinho. Pelo contrário, quando o rio seca, o moínho não mói, e, já se deixa ver, não há "qunque" para o pifão. E por isso mesmo é que, não havendo água, tem que beber água...
Moleiro: - Já entendo. A adivinha quere dizer o moleiro, e está realmente bem feita.
Comp: - Olhe, estou cá a pensar na sua situação. Se fosse a si, deixava esse ofício que mal lhe dá para viver.
Moleiro: - Eu, deixar a minha arte? Trocá-la por outra? Oh! Nunca! É que o sr. nem sequer pensou ainda na enternecedora beleza e poesia dos moínhos. A água parece que fala e canta na levada, e não há diadema mais belo do que os milhões de pérolazinhas irisadas que o rodízio faz! A mó, então, parece que embala um menino de peito, rom-rom-rom... rom-rom-rom... Sobre ela, o tangedor, sempre a bater, parece que diz: tero-lero-lero... tero-lero-lero...
Ah! moínho do meu coração! Quero-te como quis ao meu primeiro amor, à minha Mar'Zé!
Ah! se o sr. ouvisse a canção do moínho, o sr. havia de sentir, como eu sinto, a modos que um nó cá por dentro...
Comp: - Pois, já agora, não se me dava de a ouvir...
Moleiro: - E olhe que é já! (Para dentro) Eh! T'Ma'Tereza!... Botem de lá essa canção do moínho!...
(As moleirinhas, de taleigos à cabeça, entram cantando):
(Segue-se a canção do moínho) na página que antecede.
Nota: - Quanto à transcrição, não esperem os meus companheiros e visitadores bloguistas por mais "material", para não retirar expectativas ao trabalho que está a ser desenvolvido sobre este e outros assuntos da freguesia.
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