Em cima exterior da capela de Santa Ana do Moutedo. Em baixo, interior da mesma capela. Fotos do site padrejulio.net, com a devida vénia |
O título «Onde a Serra Começa» e o sub-título «Moutedo: O que tem de melhor são os ares...» são da autoria do conceituado jornalista e escritor Armor Pires Mota. Os mesmos títulos faziam parte de uma série (esta já tinha o número 12) de reportagens que este amigo fez em 1971, provavelmente publicada em 10 de Abril deste ano, toda ela relacionada com as aldeias até aí quase desconhecidas e inacessíveis. E estas junto do sopé das montanhas que iniciavam a formação da serra das Talhadas, do Giestal, do Caramulo, etc. Por isso, onde a serra começa... Acompanhei várias vezes o Armor nestas andanças e conheci estas povoações muito tempo antes daquele ano, com as suas dificuldades e com tudo aquilo que lhes fazia falta.
Um dia destes, na Biblioteca Municipal, encontrei duas reportagens sobre essas localidades e outras, de que não obtive cópias, que faziam parte desta temática, publicadas pela centenária Soberania do Povo, de cuja redacção aquele amigo era o seu responsável.
É um texto extenso para blogue, mas vale a pena recordar o que era o retrato do Moutedo, nas palavras das pessoas ali citadas, hoje já desaparecidas do nosso convívio. É que, naquela altura, não havia estrada, não havia água, não havia electricidade, nada... e foi assim:
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Decididos a desbravar pela pena as terras do Marnel, chegámos ao Moutedo, em tarde de sol bravio, com duas andorinhas riscando a nesga de alcatrão. Subimos ao largo da capela de Santa Ana do Moutedo, edificada em 1959 pelo povo e pelo grande benemérito Augusto Pereira dos Santos. E, depois de anotarmos na parede do coro uma mancha verde de musgo ali plantada pela chuva e uma janela carcomida, metade sem vidros, saindo, lançámos os olhos pelo mar verde de pinhais, ondulando em requebros de luz, até ao mar, com manchas de branco casario, Toural, Pedaçães, Cabeço do Vouga.
QUANDO SOPRA O VENTO NORDESTE
Isto é muito lindo. Chega-se a ver o farol da Barra, em dias mais limpos. Hoje está muito empoado. Aquele monte acolá é o Buçaco - dizia-nos Maria da Silva Bastos para abrir a conversa. Mas continuou: Estes ares daqui são mais sãos. É serra. Não há gente que vai para o Caramulo tomar ares? O mal desta terra é o vento nordeste que dá cabo das vinhas e de tudo. Quando sopra é um caso sério. Ameaça-nos de fracas colheitas: Lá para baixo, este maldito vento não se sente tanto. Vivemos bem, perguntou? Muito bem? Sabe Deus como. Os que cavam na terra vivem mal. Está bom é para os que trabalham nas fábricas... Isto é muito lindo. Hoje é que não. As vistas são feias, porque está tudo muito empoado... Os ares são bons, mas a luz das estrelas à noite não nos basta. A luz é a única coisa que nos falta. E também a estrada está numa lástima, uma miséria...
ISTO UM DIA SERÁ UMA ILHA
E, deixando o largo da capela e a apetecida frescura da fonte a correr para os pássaros que lá mergulhavam, atirámo-nos por um carreiro e pudemos verificar a riqueza dos campos ou o esforço heróico dos homens desta terra. Mas continuará Moutedo a ser uma terra lavrada, fecundada pelo suor abnegado do lavrador? A esta pergunta que formulámos só para nós, teve uma resposta. Veio ela do sr. Vidal: Isto um dia será uma ilha. Ficamos um ou dois. A agricultura dá alguma coisa que preste? A gente farta-se de trabalhar, sua camisas...
Estávamos na calçada dura da parte velha da aldeia, estreita e intransitável, por onde cabe, a custo, um carro de bois, entre paredes e muros de pedra negra roubada à rocha. Pressentimos passos antigos na calçada, de centénios...
UM RECADO LEVA-SE ATÉ AO FIM
Não há ninguém que tenha tudo. Uns são mais exigentes, outros menos - disse-nos com certo ar filosofal o Sr. Aldo. - A parte baixa é decerto a mais antiga do Moutedo. Quem sabe qualquer coisa disso é o Sr. Inspector Arménio. Falta cá o velhote Baptista...
Aqui há tempos esboçou-se o problema da luz eléctrica. Parece que sol de pouca dura. Esmoreceu-se um pouco. Continuou o Sr. Aldo: Há qualquer coisa sobre a luz. Veio aí o Dr. Ladeira, de Lisboa, que expôs a necessidade de se arranjarem umas somas para ajuda. Então, correu-se o povo, mas arranjou-se uma conta pequena. Esta coisa precisa de ser conversada e bem conversada. Há que abrir os olhos a todas as pessoas, como sabe. É tempo de abrirmos os olhos. Isto é muito espalhado, Salgueira, Moutedo, Cadaveira. E são poucos fogos. É muito terreno sem povo. É preciso que cada um se cotize com uma grande soma, pois a Câmara não pode fazer tudo, na verdade. E reparem bem que há muita gente que pensa assim: quando os outros tiverem luz, eu também tenho. Este é um palavreado que deve ficar para amanhã. Houve pessoas que se mexeram, mas não levaram o recado até ao fim e quando uma pessoa toma conta de um recado deve levá-lo ate ao fim, frisou o Sr. Aldo, porque da conversa nasce a luz.
E o Sr. Aldo quase sentiu pena de não viver até em Cativos, lugar de Sever do Vouga, ali em cima: aquele lugar é uma bacia, muitos montes de todos os lados. Mas o povo cotizou-se e lá tem a luz.
E a mesma verdade amarga que pressentimos por sobre as paredes de duas ou três casas esquecidas, abandonadas, com os tectos ruídos sobre silvados: isto vai decrescendo e não sei mesmo se um dia acabará. Os meus filhos estão todos para fora. Aqui, Moutedo dura mais algum tempo, mas a Cadaveira desaparece. Há muitos que partem e não voltam. Não há condições. E a fechar: Estes ares são muito bons. São o que temos de melhor. Eu já nasci no outro século [séc. XIX]. Já tenho, por isso, dois séculos.
O Sr. Aldo já tem «dois séculos». Mas Moutedo é muito mais velho e vai às pegadas dos tempos antigos, de outras gentes talvez mais felizes na sua pacatez de burel.
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